Bem de família. Alienação fiduciária em garantia. Afastamento da impenhorabilidade. STJ, EREsp 1.559.348.
Por Flávio Borges
09 de junho de 2023
Civil
Contratos
Direito de família

Entendimento

A oferta voluntária de seu único imóvel residencial em garantia a um contrato de mútuo, favorecedor de pessoa jurídica em alienação fiduciária, não conta com a proteção irrestrita do bem de família.

Hipótese fática

Uma pessoa jurídica e duas pessoas físicas ajuizaram ação de conhecimento contra o Banco Safra S/A, pleiteando a nulidade da alienação fiduciária do imóvel que realizaram.  

A sentença de primeiro grau julgou o pedido improcedente e a apelação que se seguiu foi denegada.

Daí a interposição do recurso especial, em que os recorrentes alegaram violação à Lei 8.009/90, que atribui impenhorabilidade ao bem de família. O recurso especial também foi desprovido, abrindo-se o caminho dos embargos de divergência, ora decidido pelo STJ.    

Fundamentos

A controvérsia decidida pelo STJ dizia respeito à possibilidade se promover a alienação fiduciária de bem imóvel.

Na prática, uma pessoa jurídica fez um financiamento para que o dinheiro tomado servisse como capital de giro do negócio.

Sucedeu que um bem de família (imóvel) foi oferecido como garantia desse empréstimo, em uma operação que a lei chama de alienação fiduciária em garantia.

Essa operação funciona assim: o bem é alienado ao banco, para servir de garantia do empréstimo. Se o empréstimo é pago, a propriedade plena volta para os então titulares do bem (moradores do bem). Se, porém, o empréstimo não é pago, a propriedade imóvel se consolida na pessoa do banco (instituição financeira), que deve levar o bem a leilão.   

A criação dessa figura da alienação fiduciária em garantia se deu porque as garantias mais tradicionais – como a hipoteca – se revelaram insuficientes para fazer frente a negócios que precisam de mais dinamismo.   

De fato, no caso da alienação fiduciária em garantia, a Lei 9.514/97 permite uma retomada mais simples do imóvel, dando agilidade a negócios que afetam a economia e a circulação do dinheiro.    

Mas o problema foi gerado por conta do art. 1º da Lei 8.009/90, de acordo com o qual “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.”

A questão era saber se o bem de família pode ser alienado nessa modalidade de alienação fiduciária em garantia (ou seja, os proprietários alienam o bem ao banco, para que o imóvel sirva de garantia a um empréstimo tomado).

O STJ pontuou que a discussão do caso não envolve propriamente a impenhorabilidade – uma vez que, a rigor, o bem não foi penhorado. O problema envolve, sim, a alienação do imóvel, ato que é feito pelos próprios proprietários, que apenas vão retomar a propriedade plena caso o empréstimo seja pago.

Conforme o STJ afirmou:

“Na alienação fiduciária não há que se discutir a “impenhorabilidade” do bem, uma vez que a propriedade foi transmitida, ainda que em caráter resolúvel, pelos devedores. Cumpre-se verificar, isto sim, a “alienabilidade” do bem.”

A conclusão tomada, seja como for, foi bem simples, colocada no sentido de que o bem de família legal, previsto na Lei 8.009/90, não gera inalienabilidade, de modo que é possível promover a sua disposição pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária, em que a propriedade resolúvel do imóvel é transferida ao credor do empréstimo como garantia do adimplemento da obrigação principal assumida pelo devedor.

A rigor, a propriedade é livremente transferida dos devedores para a instituição financeira. Por isso, “não se afigura possível beneficiar aquele que, com reserva mental, ofereceu em garantia imóvel de sua propriedade, por meio de alienação fiduciária, a fim de obter recursos em contrato de mútuo sob condições mais favoráveis e, em momento posterior, após o inadimplemento da dívida, alega a invalidade do ato de disposição em razão da proteção conferida ao bem de família."

Dispositivos

Lei 8.009/90
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

Art. 2º Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.
Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo.

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015)
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III -- pelo credor de pensão alimentícia;
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; (Redação dada pela Lei nº 13.144 de 2015)
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação; e (Redação dada pela Medida Provisória nº 871, de 2019)
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)
VIII - para cobrança de crédito constituído pela Procuradoria-Geral Federal em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial recebido indevidamente por dolo, fraude ou coação, inclusive por terceiro que sabia ou deveria saber da origem ilícita dos recursos. (Incluído pela Medida Provisória nº 871, de 2019)

Lei 9.514/97
Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

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Ementa

PROCESSO CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. TRANSMISSÃO CONDICIONAL DA PROPRIEDADE. BEM DE FAMÍLIA DADO EM GARANTIA. VALIDADE DA GARANTIA. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA E JURÍDICA ENTRE OS ACÓRDÃOS CONFRONTADOS. ACÓRDÃO EMBARGADO NO MESMO SENTIDO DA JURISPRUDÊNCIA ATUAL DO STJ. SÚMULA Nº 168 DO STJ. EMBARGOS NÃO CONHECIDOS.
1. A controvérsia envolvendo o presente caso diz respeito a suposto dissenso jurisprudencial sobre a impenhorabilidade do bem de família, na hipótese em que ocorrer a alienação fiduciária de imóvel em operação de empréstimo bancário.
2. O bem de família legal, previsto na Lei nº 8.009/90, não gera inalienabilidade, possibilitando a sua disposição pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária, em que a propriedade resolúvel do imóvel é transferida ao credor do empréstimo como garantia do adimplemento da obrigação principal assumida pelo devedor.
3. A divergência viabilizadora dos embargos não ficou configurada, em razão da ausência de similitude fática e jurídica entre os acórdãos confrontados, uma vez que os acórdãos paradigmas trataram da garantia hipotecária, matéria distinta da hipótese sob análise, que diz respeito ao instituto da alienação fiduciária.
4. Os embargos de divergência visam harmonizar precedentes conflitantes proferidos em Turmas distintas do STJ, pressupondo a comprovação de dissídio pretoriano atual (art. 266 do RISTJ).
5. Na hipótese dos autos não se encontra presente a finalidade de uniformizar a interpretação do direito infraconstitucional, uma vez que a matéria já se encontra pacificada pela Segunda Seção do STJ, no sentido de que (a) a proteção conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (b) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação do princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico (AgInt nos EDv nos EREsp n. 1.560.562/SC, relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Segunda Seção, REPDJe de 30/6/2020, DJe de 9/6/2020).
6. Incidência da Súmula nº 168 do STJ: Não cabem embargos de divergência, quando a jurisprudência do Tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado.
7 . Embargos de divergência não conhecidos.
(EREsp n. 1.559.348/DF, relator Ministro Moura Ribeiro, Segunda Seção, julgado em 24/5/2023, DJe de 6/6/2023)

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Bem de família. Alienação fiduciária em garantia. Afastamento da impenhorabilidade. STJ, EREsp 1.559.348.