Entendimento
Cabe à Justiça comum estadual e/ou distrital processar e julgar as demandas oriundas de ações de repactuação de dívidas decorrentes de superendividamento, ainda que exista interesse de ente federal.
Hipótese fática
O STJ julgou um conflito de competência entre um juiz estadual e um juiz federal, instaurado a partir de um processo relacionado ao superendividamento de um consumidor.
A discussão em torno da competência surgiu pelo fato de a Caixa Econômica Federal, um dos credores que participavam do feito, ter foro na Justiça Federal, conforme a primeira parte do art. 109, I, da Constituição. O juízo federal entendeu, porém, que o caso deveria gerar a aplicação da parte final do art. 109, I, da CF, que exclui da Justiça Federal as causas relativas à falência.
Fundamentos
A controvérsia decidida pelo STJ girava em torno da competência para processar e julgar o processo de repactuação de dívidas, ajuizado pela pessoa natural (consumidor) que esteja em situação de superendividamento.
A rigor, no plano do Direito Empresarial, aplicável às diversas espécies de sociedades, a legislação prevê os processos de recuperação judicial e de falência, os quais se devem basear, de um lado, na elaboração de um plano para se obter o pagamento das dívidas do devedor, e, de outro, na preservação da própria empresa – elemento imprescindível ao fortalecimento da economia.
Mas o legislador inaugurou por meio da Lei 14.181/2021 – que acrescentou no Código de Defesa do Consumidor os arts. 104-A, 104-B e 104-C – um processo para a discussão dos débitos do consumidor pessoal natural que se encontra em um estágio de superendividamento.
O art. 54-A, § 1º, do CDC conceituou o instituto, dizendo que se entende “por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.”
O procedimento previsto para a repactuação dessas dívidas – conforme revelado no art. 104-A do Código de Defesa do Consumidor – indica a necessidade de participação de todos os credores; forma-se, então, um concurso de credores, com a criação de um plano de pagamento.
Daí o problema enfrentado em um caso concreto, que contava com a Caixa Econômica Federal entre os credores listados.
A Caixa Econômica federal possui a natureza jurídica de empresa pública, figura que, pelo menos em princípio, deve litigar na Justiça Federal, conforme estabelece a primeira parte do art. 109, I, da Constituição.
O STJ, porém, adotou uma conclusão diversa.
A Corte lembrou que a parte final dessa regra do art. 109, I, da CF estabelece algumas exceções à competência da Justiça Federal.
O dispositivo diz que compete aos juízes federais julgar “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.”
A ênfase dada pelo STJ, portanto, trabalhou com a expressão “exceto as de falência”, espécie de processo que não é julgado pela Justiça Federal, ainda que algum desses entes federais precise intervir no feito. A competência para o julgamento das falências é, por isso mesmo, da Justiça Estadual.
É verdade, por outro lado, que a falência é um instituto típico do Direito Empresarial. Mas o STJ pontuou, de todo modo, que o Supremo (RE 678.162) já havia fixado o sentido dessa exceção colocada no art. 109, I, da CF, que deve abranger também os processos relacionados à insolvência civil. A interpretação a ser feita, portanto, não é de natureza literal, mas sim de base finalística.
Conforme o próprio STJ:
“De fato, o procedimento judicial relacionado ao superendividamento, tal como o de recuperação judicial ou falência, possui inegável e nítida natureza concursal, de modo que as empresas públicas federais, excepcionalmente, sujeitam-se à competência da Justiça estadual e/ou distrital, justamente em razão da existência de concursalidade entre credores, impondo-se, dessa forma, a concentração, na Justiça comum estadual, de todos os credores, bem como o próprio consumidor para a definição do plano de pagamento, suas condições, o seu prazo e as formas de adimplemento dos débitos.”
Se não bastasse, o STJ ainda argumentou que não é caso de se desmembrar o processo – remetendo à Justiça Federal a parte da lide movida contra a Caixa Econômica –, ato que terminaria por desconstituir o concurso de credores, em óbvio prejuízo do devedor.
Dispositivos
Constituição Federal
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
(...)
Código de Defesa do Consumidor
Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 2º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 3º No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 4º Constarão do plano de pagamento referido no § 3º deste artigo: (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
I - medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
II - referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
III - data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
IV - condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 5º O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)