Superendividamento. Presença da Caixa Econômica Federal. Conflito de competência. Justiça Estadual. STJ, Segunda Seção, CC 193.066. (publicado no Informativo STJ 768)
Por Flávio Borges
31 de março de 2023
Processo civil
Competência
Consumidor
Defesa do consumidor em juízo

Entendimento

Cabe à Justiça comum estadual e/ou distrital processar e julgar as demandas oriundas de ações de repactuação de dívidas decorrentes de superendividamento, ainda que exista interesse de ente federal.
 

Hipótese fática

O STJ julgou um conflito de competência entre um juiz estadual e um juiz federal, instaurado a partir de um processo relacionado ao superendividamento de um consumidor.

A discussão em torno da competência surgiu pelo fato de a Caixa Econômica Federal, um dos credores que participavam do feito, ter foro na Justiça Federal, conforme a primeira parte do art. 109, I, da Constituição. O juízo federal entendeu, porém, que o caso deveria gerar a aplicação da parte final do art. 109, I, da CF, que exclui da Justiça Federal as causas relativas à falência.   

Fundamentos

A controvérsia decidida pelo STJ girava em torno da competência para processar e julgar o processo de repactuação de dívidas, ajuizado pela pessoa natural (consumidor) que esteja em situação de superendividamento.

A rigor, no plano do Direito Empresarial, aplicável às diversas espécies de sociedades, a legislação prevê os processos de recuperação judicial e de falência, os quais se devem basear, de um lado, na elaboração de um plano para se obter o pagamento das dívidas do devedor, e, de outro, na preservação da própria empresa – elemento imprescindível ao fortalecimento da economia.

Mas o legislador inaugurou por meio da Lei 14.181/2021 – que acrescentou no Código de Defesa do Consumidor os arts. 104-A, 104-B e 104-C – um processo para a discussão dos débitos do consumidor pessoal natural que se encontra em um estágio de superendividamento.

O art. 54-A, § 1º, do CDC conceituou o instituto, dizendo que se entende “por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.”

O procedimento previsto para a repactuação dessas dívidas – conforme revelado no art. 104-A do Código de Defesa do Consumidor – indica a necessidade de participação de todos os credores; forma-se, então, um concurso de credores, com a criação de um plano de pagamento.

Daí o problema enfrentado em um caso concreto, que contava com a Caixa Econômica Federal entre os credores listados.

A Caixa Econômica federal possui a natureza jurídica de empresa pública, figura que, pelo menos em princípio, deve litigar na Justiça Federal, conforme estabelece a primeira parte do art. 109, I, da Constituição.

O STJ, porém, adotou uma conclusão diversa.

A Corte lembrou que a parte final dessa regra do art. 109, I, da CF estabelece algumas exceções à competência da Justiça Federal.

O dispositivo diz que compete aos juízes federais julgar “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.”

A ênfase dada pelo STJ, portanto, trabalhou com a expressão “exceto as de falência”, espécie de processo que não é julgado pela Justiça Federal, ainda que algum desses entes federais precise intervir no feito. A competência para o julgamento das falências é, por isso mesmo, da Justiça Estadual.

É verdade, por outro lado, que a falência é um instituto típico do Direito Empresarial. Mas o STJ pontuou, de todo modo, que o Supremo (RE 678.162) já havia fixado o sentido dessa exceção colocada no art. 109, I, da CF, que deve abranger também os processos relacionados à insolvência civil. A interpretação a ser feita, portanto, não é de natureza literal, mas sim de base finalística.

Conforme o próprio STJ:

“De fato, o procedimento judicial relacionado ao superendividamento, tal como o de recuperação judicial ou falência, possui inegável e nítida natureza concursal, de modo que as empresas públicas federais, excepcionalmente, sujeitam-se à competência da Justiça estadual e/ou distrital, justamente em razão da existência de concursalidade entre credores, impondo-se, dessa forma, a concentração, na Justiça comum estadual, de todos os credores, bem como o próprio consumidor para a definição do plano de pagamento, suas condições, o seu prazo e as formas de adimplemento dos débitos.”

Se não bastasse, o STJ ainda argumentou que não é caso de se desmembrar o processo – remetendo à Justiça Federal a parte da lide movida contra a Caixa Econômica –, ato que terminaria por desconstituir o concurso de credores, em óbvio prejuízo do devedor.

Dispositivos

Constituição Federal
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
(...)

Código de Defesa do Consumidor
Art. 104-A. A requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 1º Excluem-se do processo de repactuação as dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento, bem como as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 2º O não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação de que trata o caput deste artigo acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 3º No caso de conciliação, com qualquer credor, a sentença judicial que homologar o acordo descreverá o plano de pagamento da dívida e terá eficácia de título executivo e força de coisa julgada. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 4º Constarão do plano de pagamento referido no § 3º deste artigo: (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
I - medidas de dilação dos prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outras destinadas a facilitar o pagamento da dívida; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
II - referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
III - data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
IV - condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
§ 5º O pedido do consumidor a que se refere o caput deste artigo não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 (dois) anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, sem prejuízo de eventual repactuação. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)

Superendividamento. Presença da Caixa Econômica Federal. Conflito de competência. Justiça Estadual. STJ, Segunda Seção, CC 193.066. (publicado no Informativo STJ 768)