Repercussão Geral, Tema 885. Coisa julgada em Direito Tributário. Relação de trato sucessivo. Decisão do STF em RE em sentido diverso à coisa julgada. Cessação dos efeitos. STF, RE 955.227.
Por Flávio Borges
22 de fevereiro de 2023
Processo civil
Sentença e coisa julgada

Tese

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

Hipótese fática

A empresa OPP Química S/A obteve uma sentença concessiva em mandado de segurança (transitada em julgado ainda no ano de 1992), com o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 7.689/89, que havia criado a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL (inconstitucionalidade reconhecida com o argumento de que a instituição desse tributo deveria ter se dado por lei complementar, e não por lei ordinária).

Depois, a Receita Federal, baseando-se no fato de que o STF havia reconhecido a constitucionalidade da Lei 7.689/89 em outros processos, terminou por autuar a empresa em 2006, em razão de fatos geradores que se deram entre 2001 e 2003.

Contra essa autuação, a Braskem S/A (que incorporou a OPP Química S/A) impetrou novo mandado de segurança, desenvolvendo o argumento de que a Receita Federal não poderia ter agido nesse caso, uma vez que a contribuinte dispunha de sentença protegida pela coisa julgada que lhe garantia o não pagamento do tributo.

A Braskem S/A venceu o processo no primeiro e no segundo graus de jurisdição, o que levou a União a interpor o RE 955.227, para discutir se a decisão posterior do STF serve como limitação temporal à coisa julgada então formada.  

Fundamentos

O STF começou por delimitar de maneira bastante precisa a tese discutida no RE 955.227. Cuidava-se de saber se existe uma limitação temporal aos efeitos da coisa julgada em razão de decisão superveniente do STF proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade.

A Corte, então, afastou a semelhança dessa discussão com outros temas já decididos em torno da relação da coisa julgada com os precedentes do STF.

Desde logo, o STF afastou a similaridade entre a discussão travada no RE ora comentado (RE 955.827) e a decisão tomada no RE 730.462, em que foi discutida a eficácia temporal de decisão transitada em julgado fundada em norma supervenientemente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, com a conclusão pela possibilidade de desconstituição pretérita da coisa julgada, mediante o ajuizamento de ação rescisória.   

A Corte também afastou a similaridade do presente RE com a decisão tomada na ADI 2.418, que deu pela constitucionalidade do art. 525, § 12, e do art. 535, § 5º, do CPC/2015, dispositivos que tratam da decisão do STF (tomada em controle difuso ou concentrado) como fundamento suficiente para afastar a coisa julgada, mas mediante o ajuizamento de uma ação rescisória ou por meio da apresentação de defesa no processo de execução.

Aqui, para que não reste dúvida a respeito da discussão, o STF definiu o alcance da decisão em controle difuso como fundamento para afastar os efeitos futuros da coisa julgada (e não para desconstituí-la retroativamente), com a dispensa, para esse fim, do ajuizamento de uma rescisória ou de uma impugnação na fase de execução.

Fixada a premissa da discussão, o STF lembrou que a coisa julgada existe enquanto estiverem em vigor os suportes fáticos e jurídicos que levaram ao julgamento originário. Uma vez modificados esses suportes fáticos ou jurídicos, os efeitos da coisa jugada não podem mais persistir.

Em obra de doutrina (Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 98-101), Teori Zavascki já mencionava essa particularidade da coisa julgada:

“[...] a sentença tem eficácia enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza. [...] A mudança de qualquer desses elementos compromete o silogismo original da sentença, porque estará alterado o silogismo do fenômeno de incidência por ela apreciado: a relação jurídica que antes existia deixou de existir e vice-versa. Daí afirmar-se que a força do comando sentencial tem uma condição implícita, a da cláusula rebus sic stantibus, a significar que ela atua enquanto se mantiverem íntegras as situações de fato e de direito existentes quando da prolação da sentença. Alterada a situação de fato (muda o suporte fático, mantendo-se o estado da norma) ou de direito (muda o estado da norma, mantendo-se o estado de fato), ou os dois, a sentença deixa de ter a força de lei entre as partes, que até então mantinha.”

Até aí, portanto, o julgamento do STF não apresenta uma novidade. A coisa julgada sempre teve essa característica de ficar vinculada aos fatos e às normas que justificaram a decisão; a mudança nesses fatos e/ou nessas normas serve para afastar os efeitos futuros da coisa julgada, algo admitido há muito tempo no país.

A novidade, porém, está na consideração expressa e clara de que a decisão tomada em recurso extraordinário com repercussão geral, quando vá em sentido diverso da decisão tomada no caso concreto, caracteriza essa mudança no estado fático-normativo suficiente a afastar os efeitos futuros da coisa julgada então formada.

Para isso, o STF tratou do fenômeno que chama de objetivação do controle difuso de constitucionalidade. Em um plano mais clássico, o controle concentrado de constitucionalidade possuía efeitos erga omnes (aplica-se a todos) e vinculantes (obriga os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário); o controle difuso, diferentemente, era aplicado apenas em relação às partes do processo concreto (com a possibilidade, quando realizado pelo STF, de haver a publicação de resolução do Senado Federal dando efeito erga omnes à decisão).

Mas o fato de o Brasil adotar os dois tipos de controle (fazendo, portanto, um controle do tipo misto) termina por gerar um relacionamento necessário entre eles. E esse relacionamento tem caminhado para uma equiparação entre o controle difuso de constitucionalidade, quando exercido pelo STF, e o controle concentrado. É a objetivação do controle difuso.

O fenômeno, de acordo com o STF, se dá (afora outras hipóteses) com o recurso extraordinário fundado na repercussão geral do tema discutido. Não à toa, a repercussão geral é um pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário que impõe a demonstração pela parte recorrente de que o tema discutido ultrapassa os interesses subjetivos da causa, considerados os pontos de vista econômico, político, social ou jurídico.

Ora, essa ultrapassagem dos interesses subjetivos da causa nada mais é do que o interesse geral na decisão a ser tomada pelo STF, o que serve para equiparar o controle difuso na via do RE (com repercussão geral) ao controle concentrado.

Por isso, a conclusão do STF ora comentada dá uma nova função à resolução do Senado Federal (art. 52, X, da CF) que publica a decisão a respeito da inconstitucionalidade da norma:

“Assim, aproveito para afirmar ser necessário que esta Corte reconheça que a declaração de inconstitucionalidade, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, possui os mesmos efeitos vinculantes e eficácia erga omnes atribuídos às ações de controle abstrato. Nesses casos, a resolução do Senado, a que faz menção o art. 52, X, da CF/1988, possuirá a finalidade de publicizar as decisões de inconstitucionalidade, não configurando requisito para a atribuição de efeitos vinculantes erga omnes.”
 
O STF, então, terminou por entender que o precedente oriundo de um recurso extraordinário com repercussão geral produz uma norma jurídica (precedente tratado como algo gerador de uma norma) que, quando diversa de uma decisão já transitada em julgado, serve para afastar os efeitos futuros da coisa julgada ligada a uma relação jurídico-tributária de trato sucessivo. O entendimento não poderia ser mais claro:

“Destaco apenas que a decisão deste Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado ou em repercussão geral, que seja contrária à coisa julgada favorável ao contribuinte, em relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, produz para ele norma jurídica nova. Essa situação se assemelha à criação de novo tributo, que, como se sabe, a depender do tributo, deve observar a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena, e, no caso das contribuições para a seguridade social, a anterioridade nonagesimal. Por conseguinte, tem-se que a publicação da ata de julgamento em controle concentrado ou controle difuso em repercussão geral equivale ao primeiro dia de vigência da nova norma que somente produzirá efeitos após os referidos períodos de “vacatio legis”, garantias fundamentais dos contribuintes que asseguram certo grau de segurança jurídica.”

Mas o STF ainda levou em conta outros pontos. A coisa julgada não é um valor isolado no ordenamento jurídico. O Direito Tributário também trabalha com os princípios da igualdade e da livre concorrência. A rigor, esse sistema de incidência da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido estava produzindo situações desequilibradas, na medida em que a maioria das empresas vinha pagando o tributo, ao passo que algumas outras pretendiam se valer de uma coisa julgada cujo entendimento já estava superado por diversos precedentes do STF postos em sentido diverso. Ao fim, essa diferença de tributação afeta o dia a dia empresarial, com repercussão sobre as relações de consumo. Por isso, o entendimento do STF, que nesses casos afasta os efeitos futuros da coisa julgada, produz mais racionalidade ao sistema, com o respeito ao princípio da igualdade tributária.   

No caso concreto, porém, o recurso extraordinário interposto pela União foi denegado. O STF identificou que não havia um recurso extraordinário com repercussão geral que tenha afirmado a constitucionalidade da Lei 7.689/89, de modo que a tese ora firmada não pôde ser aplicada na hipótese julgada.

Havia, isso sim, a ADI 15 (com decisão erga omnes e vinculante que serve a cessar os efeitos futuros da coisa julgada tributária de trato sucessivo), julgada em 2007, parâmetro temporal que deve ser levado em conta na cessação desses efeitos futuros da coisa julgada, respeitadas a irretroatividade e as diversas espécies de anterioridade. O caso concreto, entretanto, se referia a autuações de fatos geradores ocorridos entre 2001 e 2003, o que impedia a aplicação retroativa da tese.

O STF, de resto, pontuou que a tese fixada serve tanto para favorecer o ente tributante como o contribuinte, sempre levando em conta a cessação dos efeitos futuros da coisa julgada em razão de decisão proferida em recurso extraordinário julgado na sistemática da repercussão geral.

Dispositivos

Constituição Federal
Art. 102 (...)
§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. 

Código de Processo Civil de 2015
Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.
§ 1º Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.
§ 2º O recorrente deverá demonstrar a existência de repercussão geral para apreciação exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal.
§ 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que:
I - contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal;
II - tenha sido proferido em julgamento de casos repetitivos;
II – ( Revogado ); (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)
III - tenha reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal, nos termos do art. 97 da Constituição Federal.

Art. 525. (...)
§ 12. Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 13. No caso do § 12, os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo, em atenção à segurança jurídica.
§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.
§ 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Art. 535. (...)
§ 5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

Repercussão Geral, Tema 885. Coisa julgada em Direito Tributário. Relação de trato sucessivo. Decisão do STF em RE em sentido diverso à coisa julgada. Cessação dos efeitos. STF, RE 955.227.