Recurso Repetitivo, Tema 622. Cobrança de dívida já paga. Pagamento em dobro do valor cobrado indevidamente. Forma de pleitear. STJ, Segunda Seção, REsp 1.111.270.
Por Flávio Borges
20 de janeiro de 2023
Processo civil
Resposta do réu
Civil
Obrigações

Tese

A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança judicial de dívida já adimplida (cominação encartada no artigo 1.531 do Código Civil de 1916, reproduzida no artigo 940 do Código Civil de 2002) pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de ação autônoma ou do manejo de reconvenção, sendo imprescindível a demonstração de má-fé do credor.

Hipótese fática

Alguns consumidores ingressaram com uma ação de conhecimento contra a administradora de um consórcio de automóveis, para pedir a devolução de valores tidos por abusivos. A ré, em contestação, defendeu que, relativamente a um dos autores, já havia realizado a devolução do montante cobrado, de modo que essa cobrança indevida que lhe estava sendo feita autorizava a aplicação do art. 940 do Código Civil, de acordo com o qual “Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.”

A sentença de primeiro grau julgou procedente em parte o pedido dos autores. E o Tribunal de Justiça do Paraná deu provimento parcial à apelação para, na parte que interessa a esse comentário, condenar um dos autores a pagar o dobro do valor cobrado à ré.

Seguiu-se a interposição de recurso especial (submetido à sistemática dos recursos repetitivos), com o argumento de que essa devolução em dobro de valores indevidamente cobrados não pode ser pedida em contestação, mas apenas em ação própria ou em reconvenção.

Fundamentos

A controvérsia levada ao STJ dizia respeito à possibilidade de se pleitear na própria contestação (e não em ação própria ou em reconvenção) a devolução em dobro da quantia indevidamente cobrada em juízo.

Tudo girava em torno da incidência do art. 940 do Código Civil de 2002 (equivalente ao art. 1.531 do Código Civil de 1916), ao pontuar que “Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.”

O STJ concluiu, então, que o direito do réu a essa devolução em dobro não é preexistente à ação. Bem o contrário, esse direito apenas vai surgir quando o autor entra com uma cobrança indevida, uma cobrança de dívida que havia sido paga. Diante dessa circunstância, o STJ manifestou não ser razoável criar um rigor excessivo para exigir que o réu pleiteie o seu direito em reconvenção, podendo, nessa hipótese, fazê-lo em contestação.

Se não bastasse, a causa de pedir formulada pelo réu é única, mas dá origem a duas consequências: a cobrança do valor que já foi pago gera tanto a improcedência desse pedido como o efeito de que o autor pague em dobro o que está cobrando indevidamente.

Um único fato, portanto, produz a improcedência do pedido e produz uma espécie de punição ao autor, de modo que é conveniente que se admita pedir a aplicação do art. 940 do CC/2002 na própria contestação.

Aliás, essa consequência da devolução em dobro é algo muito próximo da litigância de má-fé (que é uma típica sanção).

Daí o STJ ter reforçado a conclusão de que a devolução em dobro da cobrança indevida pode ser aplicada de ofício pelo juiz, assim como pode ser pedida na própria contestação, como uma espécie de pedido contraposto (algo que existe no procedimento dos Juizados Especiais e nas ações possessórias).

Demais disso, o STJ lembrou que já admitia que a contestação e a reconvenção fossem apresentadas na mesma peça processual, o que desagua na possibilidade de que esse art. 940 do CC/2002 seja invocado na contestação apresentada pelo réu.

Cumpre pontuar, de resto, que o CPC de 2015 caminhou nessa exata linha de prever que a contestação e a reconvenção devem ser oferecidas em peça única (art. 343 do CPC/2015).

O STJ ainda decidiu que a aplicação desse art. 940 do CC pressupõe a demonstração de que o autor agiu de má-fé, na linha do que exige a Súmula 159 do STF.

Dispositivos - Súmulas

Código Civil
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

STF, Súmula 159
Cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil.

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Ementa

RECURSOS ESPECIAIS - DEMANDA POSTULANDO A DECLARAÇÃO DE INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA SOBRE AS PARCELAS PAGAS A CONSÓRCIO E A RESPECTIVA RESTITUIÇÃO DOS VALORES - ACÓRDÃO ESTADUAL QUE CONSIDEROU INCIDENTES JUROS DE MORA, SOBRE OS VALORES REMANESCENTES A SEREM DEVOLVIDOS AOS AUTORES, DESDE O 31º DIA APÓS O ENCERRAMENTO DO GRUPO CONSORCIAL, BEM COMO APLICOU A SANÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 1.531 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 (ATUAL ARTIGO 940 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002) EM DETRIMENTO DO DEMANDANTE QUE NÃO RESSALVARA OS VALORES RECEBIDOS.
1. Insurgência dos consorciados excluídos do grupo.
1.1. Controvérsia submetida ao rito dos recursos repetitivos (artigo 543-C do CPC): A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança judicial de dívida já adimplida (cominação encartada no artigo 1.531 do Código Civil de 1916, reproduzida no artigo 940 do Código Civil de 2002) pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de ação autônoma ou do manejo de reconvenção, sendo imprescindível a demonstração de má-fé do credor.
1.2. Questão remanescente. Apesar do artigo 1.531 do Código Civil de 1916 não fazer menção à demonstração da má-fé do demandante, é certo que a jurisprudência desta Corte, na linha da exegese cristalizada na Súmula 159/STF, reclama a constatação da prática de conduta maliciosa ou reveladora do perfil de deslealdade do credor para fins de aplicação da sanção civil em debate. Tal orientação explica-se à luz da concepção subjetiva do abuso do direito adotada pelo Codex revogado. Precedentes.
1.3. Caso concreto. 1.3.1. A Corte estadual considerou evidente a má-fé de um dos autores (à luz das circunstâncias fáticas constantes dos autos), aplicando-lhe a referida sanção civil e pugnando pela prescindibilidade de ação autônoma ou reconvenção. 1.3.2.
Consonância entre o acórdão recorrido e a jurisprudência desta Corte acerca da via processual adequada para pleitear a incidência da sanção civil em debate. Ademais, para suplantar a cognição acerca da existência de má-fé do autor especificado, revelar-se-ia necessária a incursão no acervo fático-probatório dos autos, providência inviável no âmbito do julgamento de recurso especial, ante o óbice da Súmula 7/STJ.
2. Irresignação da administradora do consórcio.
2.1. Voto vencedor (e. Ministro Luis Felipe Salomão). Nos termos da jurisprudência da Segunda Seção, firmada no bojo de recurso especial representativo da controvérsia (artigo 543-C do CPC), a administradora do consórcio tem até trinta dias, a contar do prazo previsto contratualmente para o encerramento do grupo, para devolver os valores vertidos pelo consorciado desistente ou excluído (REsp 1.119.300/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 14.04.2010, DJe 27.08.2010). Nessa perspectiva, o transcurso do aludido lapso temporal, sem a ocorrência da restituição efetivamente devida, implica a incidência de juros moratórios a partir do trigésimo primeiro dia do encerramento do grupo consorcial. Orientação aplicável inclusive aos casos em que o ajuizamento da demanda ocorre após a liquidação do consórcio.
2.2. Voto vencido do relator. À luz das peculiaridades do caso concreto - ação ressarcitória ajuizada após o encerramento do grupo consorcial; inexistência de estipulação de termo certo no contrato de adesão; e incidência de previsão normativa, vigente à época, acerca da necessária iniciativa do credor para o recebimento do pagamento (o que caracteriza a dívida como quesível) - afigurar-se-ia cabida a adoção da exegese acerca da incidência dos juros de mora a partir da citação - momento em que ocorrida a obrigatória interpelação do devedor.
3. Recursos especiais desprovidos. Vencido o relator na parte em que dava provimento ao apelo extremo da administradora do consórcio, a fim de determinar a incidência dos juros de mora a partir da citação.
(REsp n. 1.111.270/PR, relator Ministro Marco Buzzi, Segunda Seção, julgado em 25/11/2015, DJe de 16/2/2016.)

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Recurso Repetitivo, Tema 622. Cobrança de dívida já paga. Pagamento em dobro do valor cobrado indevidamente. Forma de pleitear. STJ, Segunda Seção, REsp 1.111.270.