Tese
1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes.
2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado.
3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).
Hipótese fática
O Ministério Público do Rio de Janeiro ingressou com ação civil pública com o objetivo de sanar as diversas irregularidades e defeitos na prestação do serviço de saúde executada pelo Hospital Salgado Filho.
A sentença de primeiro grau julgou improcedente o pedido, expondo o entendimento de que o Poder Judiciário não poderia intervir em questões que dizem respeito a políticas discricionárias a serem implantadas pelo Executivo.
Veio a apelação e o Tribunal de Justiça reformou a sentença, para adotar posição completamente oposta, com a determinação de que o Estado adotasse atos específicos – como a realização de servidores públicos para suprir a ausência de pessoal e a correção das demais irregularidades no prazo de 6 meses.
Daí surgiu o recurso extraordinário interposto pelo Estado do Rio de Janeiro, com a defesa da tese de que “[o] Judiciário pode, sim, rever o ato discricionário e, se for o caso, declará-lo nulo, pois nenhuma lesão de direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário; o que não pode, repita-se, é determinar que o agente público pratique um ato discricionário cuja escolha de conveniência e oportunidade lhe pertence.”
Fundamentos
A controvérsia posta diante do STF permitia, a rigor, três desfechos. A ação ajuizada não trazia um simples pedido individual de entrega de uma prestação de saúde – um dado medicamento ou uma internação.
Cuidava-se de um pedido para resolução de um problema amplo de política pública de saúde, a envolver todo o funcionamento de um hospital público, com a apresentação destas possíveis respostas:
- impossibilidade de intervenção do Judiciário, em respeito ao princípio da separação dos poderes, uma vez que a política pública de saúde deve ser conduzida pelo Poder Executivo;
- determinação, oriunda do Poder Judiciário, para a adoção de providências específicas para a completa solução do problema;
- fixação, pelo Poder Judiciário, da finalidade a ser atingida, deixando-se, porém, ao Executivo a escolha dos meios suficientes (de acordo com a sua discricionariedade e disponibilidade) a atingir o resultado.
O STF fixou premissas bem interessantes no caso.
O Tribunal lembrou que o reconhecimento de que o direito à saúde é um direito fundamental de segunda geração que impõe a adoção de atos concretos com vistas a se atingir uma prestação de serviço universal e adequada. Não se trata, portanto, de uma proposta meramente teórica, mas da necessidade de se resolver questões concretas.
Essa premissa inicial, de todo modo, está longe de resolver o problema. A implantação de políticas públicas pressupõe uma disponibilidade orçamentária, o que faz surgir o conflito básico da economia: a escassez.
As demandas são infinitas; os recursos financeiros são limitados.
O gestor da saúde precisa, então, fazer escolhas, mas sempre voltadas ao maior grau de eficiência possível e viável.
O Supremo afirmou que as ações que envolvem o direito à saúde têm sido pensadas e conduzidas dentro de uma lógica de resolução pontual dos conflitos, prática que pode não ser a mais adequada.
Quando se concede uma prestação de saúde a determinada pessoa, é possível que se esteja tirando uma prestação de saúde devida a outra pessoa.
O conflito que se coloca, por isso mesmo, não é entre a vida/saúde de um indivíduo e o orçamento público. O conflito que se coloca é entre a vida de uma pessoa e a vida das demais pessoas, o que evidentemente gera escolhas difíceis.
De acordo com este julgamento do STF, a resolução pontual do problema coloca em risco a sua resolução global/estrutural:
“Esses problemas colocam em risco a própria continuidade das políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. De fato, a atuação casuística do Poder Judiciário atende às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas, globalmente, pode interferir nas possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública. (...). Portanto, nessa seara, o Judiciário certamente não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que seriam promovidos com a sua atuação. Mas também não deve querer ser mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, acabar causando grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos.”
O STF passou, então, a fixar os parâmetros de intervenção judicial nas políticas públicas de saúde.
A primeira delas se relaciona à comprovação real, e não meramente retórica, da ausência ou da grave deficiência na prestação do serviço público.
Depois, o Judiciário deve observar a possibilidade de universalização da providência a ser determinada, considerados os recursos realmente existentes.
Em terceiro lugar, cabe ao órgão julgador determinar a finalidade a ser atingida, mas não o modo como ela deverá ser alcançada. Uma vez fixada a meta a ser cumprida, há diversos meios disponíveis à sua implementação, escolha que deve ficar a cargo do administrador.
Por fim, como o Poder Judiciário não possui expertise nessas diversas áreas técnicas de intervenção, ele precisa atuar de acordo com estudos e pareceres feitos pelos profissionais de cada setor da política pública que está em discussão, sem prejuízo de admitir a intervenção dos amigos da Corte (amici curiae).
No caso concreto, a decisão recorrida (nesse RE 684.612) determinou providências específicas que o Município do Rio de Janeiro deveria adotar em relação ao Hospital Salgado Filho.
O STF, porém, decidiu que, constatado o déficit de profissionais de saúde, caberia ao Judiciário determinar a correção da irregularidade, mas deixando a cargo do Poder Executivo Municipal a forma como vai agir, com a realização de concurso público, por meio do deslocamento de pessoal ou através da celebração de contratos de gestão e termos de parceria com organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP).
Dispositivos
Constituição Federal
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.