Entendimento
A absolvição na ação de improbidade administrativa em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida esvazia a justa causa para manutenção da ação penal.
Hipótese fática
Maria Cristina Boner Leo ingressou com recurso em habeas corpus contra acórdão proferido pelo TJDFT, que indeferiu o trancamento da ação penal à qual respondia, ao argumento de que a independência entre as instâncias cível e penal autoriza a continuidade do processo criminal, mesmo que a acusada tenha sido absolvida na ação de improbidade administrativa.
A impetrante argumentou que o reconhecimento judicial, proferido na ação de improbidade administrativa, de que ela não agiu com dolo nem recebeu qualquer vantagem indevida retira a justa causa para a abertura/manutenção da ação penal.
Fundamentos
O tema analisado pela Quinta Turma do STJ dizia respeito à repercussão que a absolvição na ação de improbidade administrativa produz no processo criminal a que a acusada responde.
A Corte pontuou, desde logo, a presença da chamada independência das instâncias cível e criminal. Cada uma dessas esferas de julgamento aprecia os fatos de acordo com as peculiaridades exigidas no enquadramento do ramo do Direito que está em jogo. Uma coisa é o enquadramento cível; outra coisa é o enquadramento penal.
Daí a consideração inicial no sentido de que a absolvição prolatada na ação de improbidade administrativa não vincula o juízo criminal, embora seja possível utilizar os elementos persuasivos dessa sentença para buscar o mesmo convencimento no processo penal.
De acordo com a Quinta Turma do STJ, porém, o caso exigia uma solução diferente. Os fatos considerados na ação de improbidade administrativa e na ação penal eram os mesmos. A acusação se baseava em uma suposta dispensa indevida de licitação. Mas o juízo que julgou a ação de improbidade administrativa considerou que a ré (particular) não havia agido com dolo; ela não havia praticado o ato ilícito em si.
A rigor, de acordo com a sentença da improbidade, a acusada (pessoa física que agiu do lado particular, e não como funcionária pública) participou de maneira legítima do procedimento aberto pela Administração. Quem atuou de modo irregular foi o agente público que pretendeu fazer uma contratação direta fora das hipóteses de dispensa da licitação. O particular apenas atendeu à convocação, sem agir com a intenção de praticar uma fraude (conforme a sentença reconheceu). Se não bastasse, o contrato foi anulado antes que qualquer valor fosse repassado, de modo que não houve o pagamento de vantagem indevida.
A Quinta Turma do STJ considerou, então, que esses fatos não poderiam ser desprezados na ação penal. Se os fatos são os mesmos, a conclusão tomada no juízo cível (a improbidade tem uma natureza cível) a respeito da falta do dolo também deve ser aplicada no juízo penal. Se o enquadramento no ato de improbidade e o enquadramento na norma penal exigem o mesmo elemento subjetivo (o dolo), o reconhecimento da falta de dolo na improbidade administrativa retira o fundamento da ação penal.
A ideia, portanto, é de gerar unicidade no Direito.
A Corte ainda lembrou a presença do art. 21, § 4º, da L. 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). A regra fala que “a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).”
É verdade que, ao tempo do julgamento do STJ, esse dispositivo estava suspenso pelo STF (ADI 7.236). Mas o STJ levou em conta uma tendência verificada nos precedentes da própria Suprema Corte de estabelecer uma independência mitigada entre as instâncias, de modo que a ausência de dolo reconhecida na ação de improbidade administrativa repercute na ação penal, para o fim de retirar-lhe a justa causa.
A ausência de justa causa significa que o processo penal nem deveria ter sido aberto ou, se o foi, que ele deve ser trancado.
O tema, de todo modo, precisa receber um acompanhamento continuado, tendo em vista que a decisão ora comentada foi proferida pela Turma, e não por uma Seção ou pela Corte Especial.
Dispositivos
Lei 8.429/92
Art. 21 (...)
§ 4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021) (Vide ADI 7236)
Código de Processo Penal
Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.
Ementa
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. OPERAÇÃO CAIXA DE PANDORA. ABSOLVIÇÃO NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. REPERCUSSÃO SOBRE A AÇÃO PENAL. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS. 2. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO. AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO DOS PARTICULARES. 3. CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS QUE RECAEM SOBRE O MESMO FATO. AUSÊNCIA DE DOLO. FATO TÍPICO NÃO CONFIGURADO. 4. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ESPECIFICIDADES EXAMINADAS PELA ESFERA CÍVEL. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO. EXCEÇÃO À INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS. 5. DOLO DE ATENTAR CONTRA PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO NÃO CONFIGURADO. CONDUTA QUE NÃO PODE REVELAR DOLO DE VIOLAR BEM JURÍDICO TUTELADO PELO DIREITO PENAL. JUSTA CAUSA ESVAZIADA. 6. RECURSO EM HABEAS CORPUS A QUE SE DÁ PROVIMENTO.
1. "A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça cristalizou-se no sentido de que as esferas civil, penal e administrativa são independentes e autônomas entre si, de tal sorte que as decisões tomadas nos âmbitos administrativo ou cível não vinculam a seara criminal". (EDcl no AgRg no REsp n. 1.831.965/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 7/12/2020, DJe de 18/12/2020.).
É pertinente, todavia, na esfera penal, considerar os argumentos contidos na decisão absolutória na via da improbidade administrativa como elementos de persuasão (REsp n. 1.847.488/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 20/4/2021, DJe de 26/4/2021).
2. A hipótese dos autos apresenta particularidades, as quais já foram, inclusive, delineadas no julgamento do Habeas Corpus n. 716.033/DF e que, de fato, demandam uma maior atenção do julgador, uma vez que a paciente foi absolvida em virtude da ausência do elemento subjetivo dos particulares.
- Ficou consignado pela instância cível que a prova da apuração judicial demonstra apenas o dolo do gestor público, não justificando a condenação dos particulares. Destacou-se, ademais, que a pessoa jurídica nem ao menos logrou êxito em ser a primeira colocada entre os concorrentes na dispensa de licitação, precisando baixar seu preço para ser escolhida, diante do descredenciamento da primeira colocada. Por fim, registrou-se que não se auferiu benefício, uma vez que o contrato foi anulado pela Corte de Contas.
3. Como é de conhecimento, a independência das esferas tem por objetivo o exame particularizado do fato narrado, com base em cada ramo do direito, devendo as consequências cíveis e administrativas ser aferidas pelo juízo cível e as repercussões penais pelo Juízo criminal, dada a especialização de cada esfera. No entanto, as consequências jurídicas recaem sobre o mesmo fato.
- Nessa linha de intelecção, não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos na denúncia não admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma em atipicidade, ensejadora do trancamento ora visado.
4. Trata-se de crime contra a Administração Pública, cuja especificidade recomenda atentar para o que decidido, sobre os fatos, na esfera cível. Ademais, deve se levar em consideração que o art. 21, § 4º, da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei n. 14.230/2021, disciplina que "a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)".
- Embora referido dispositivo esteja com a eficácia suspensa por liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal, em 27/12/2022, na ADI 7.236/DF, tem-se que o legislador pretendeu definir ampla exceção legal à independência das esferas que, embora não autorize o encerramento da ação penal em virtude da absolvição na ação de improbidade administrativa por qualquer fundamento, revela que existem fundamentos tão relevantes que não podem ser ignorados pelas demais esferas.
- A suspensão do art. 21, § 4º, da Lei 8.429/1992, na redação dada pela Lei n. 14.230/2021 (ADI 7.236/DF) não atinge a vedação constitucional do ne bis in idem (Rcl. n. 57.215/DF MC, Rel.: Min. Gilmar Mendes, j. 06 jan. 2023, p. 09 jan. 2023) e sem justa causa não há persecução penal.
- Apesar de, pela letra da lei, o contrário não justificar o encerramento da ação penal, inevitável concluir que a absolvição na ação de improbidade administrativa, na hipótese dos autos, em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida, esvazia a justa causa para manutenção da ação penal. De fato, não se verifica mais a plausibilidade do direito de punir, uma vez que a conduta típica, primeiro elemento do conceito analítico de crime, depende do dolo para se configurar, e este foi categoricamente afastado pela instância cível.
- A propósito: REsp n. 1.689.173/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 21/11/2017, DJe de 26/3/2018); AgRg no HC n. 367.173/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/3/2017, DJe de 27/3/2017 e RHC n. 22.914/BA, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 4/11/2008, DJe de 24/11/2008.
5. Tendo a instância cível afirmado que não ficou demonstrado que os particulares induziram ou concorreram dolosamente para a prática de ato que atente contra os princípios da administração, registrando que "a amplitude da previsão legislativa não pode induzir o intérprete a acolher ilações do autor da ação civil pública, pois ausente a subsunção dos fatos à norma que prevê a responsabilização dos particulares na Lei n. 8.429/92 (art. 3º)", não pode a mesma conduta ser violadora de bem jurídico tutelado pelo direito penal.
Constata-se, assim, de forma excepcional, a efetiva repercussão da decisão de improbidade sobre a justa causa da ação penal em trâmite, motivo pelo qual não se justifica a manutenção desta última. Nas palavras do Ministro Humberto Martins, então Presidente da Corte: "a unidade do Direito" deve se pautar pela coerência.
- Confiram-se: AgRg nos EDcl no HC n. 601.533/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 21/9/2021, DJe de 1/10/2021 e Rcl 41557, relator(a): Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 15/12/2020, DJe-045 DIVULG 09-03-2021 PUBLIC 10-03-2021 e HC 158319, Relator (a): Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 26/06/2018, DJe-219 DIVULG 11-10-2018 PUBLIC 15-10-2018.
6. Recurso em habeas corpus a que se dá provimento.
(RHC n. 173.448/DF, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 13/3/2023.)