Tribunal do Júri Federal. Hipóteses configuradoras de competência. STJ, CC 194.981, julgado em 24/05/2023.
Por Flávio Borges
23 de junho de 2023
Processo Penal
Competência

Entendimento

Tribunal do Júri Federal. Hipóteses configuradoras de competência. STJ, CC 194.981.

Hipótese fática

A Vara da Justiça Estadual de Marília/SP estabeleceu um conflito de competência com a Vara da Justiça Federal dessa mesma cidade.

Na origem, foi cometido um crime de contrabando e um crime de homicídio – esse foi praticado para garantir a impunidade do delito de contrabando.

O juízo do Tribunal do Júri Federal entendeu, porém, que o caso não trazia um interesse federal específico relativamente ao crime de homicídio, o que o fez declinar para o Tribunal do Júri Estadual.

O Tribunal do Júri Estadual, à sua vez, também declinou da competência, por entender que a conexão com um crime federal atrai a competência ampla da Justiça Federal.

O conflito de competência foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista ter sido estabelecido entre juízes vinculados a tribunais diversos.           

Fundamentos

O STJ começou repetindo a premissa que foi fixada nas instâncias de origem.

Houve o cometimento de um delito de contrabando, que é um crime de competência da Justiça Federal – tendo em vista que trabalha com a introdução de produtos proibidos no território nacional, o que atinge o interesse da União de zelar pela fronteira nacional.

Mas logo em seguida foi igualmente praticado o crime de homicídio, cometido para assegurar a impunidade da conduta do contrabando.
 
Essa circunstância atraiu ao caso o art. 76, II, do CPP, de acordo com o qual os processos devem ser reunidos “se, no mesmo caso, houverem sido umas [infrações] praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas.”

A controvérsia, de todo modo, continuou a existir, com a discussão em torno da competência do Tribunal do Júri Estadual ou do Tribunal do Júri Federal.

Daí entrou em jogo a Súmula 122 do STJ, sempre lembrada nessas ocasiões. O enunciado dispõe que “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, "a", do Código de Processo Penal.”

Então, quando há conexão processual entre um crime federal e um crime estadual, os processos são reunidos na Justiça Federal, tendo em vista que a competência da Justiça Federal é extraída diretamente da Constituição.

Se não bastasse esse fundamento, o STJ ainda mencionou que seria possível apontar que o homicídio cometido no caso era um crime originariamente da competência federal, uma vez que, se ele foi praticado para assegurar a impunidade do delito de contrabando, ele terminou por atingir o serviço de investigação e de judicialização prestados pela União (art. 109, IV, da CF).  

Os processos precisavam, então, ser reunidos na Justiça Federal, de modo mais específico no Tribunal do Júri Federal.

De acordo com o STJ:

“O raciocínio que faz prevalecer a competência do Júri Estadual sobre a competência da Justiça Federal parte da premissa equivocada de que a previsão constitucional de competência do Tribunal do Júri diz respeito tão-somente ao Júri estadual e que, por essa razão, se sobreporia à competência da Justiça Federal. No entanto, o art. 5.º, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição da República, assegura a competência do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, não fazendo nenhuma distinção entre o Tribunal do Júri Estadual e o Tribunal do Júri Federal, sendo este último previsto expressamente no art. 4.º do Decreto-Lei n. 253/1967, recepcionado pela atual Carta de 1988.”

Não custa pontuar, de resto, que o presente entendimento representou uma mudança na jurisprudência do STJ, que entendia (CC 153.306), em caso semelhante, pela competência do Tribunal do Júri Estadual.

Aconteceu, por isso, a chamada superação de entendimento (overruling), com a vigência de uma nova conclusão em torno do tema.  

Dispositivos - Súmulas

Constituição Federal
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
(...)

Código de Processo Penal
Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:
I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
I - no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri; (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
Il - no concurso de jurisdições da mesma categoria: (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
a) preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave; (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
b) prevalecerá a do lugar em que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual gravidade; (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
c) firmar-se-á a competência pela prevenção, nos outros casos; (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
III - no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação; (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)
IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta. (Redação dada pela Lei nº 263, de 23.2.1948)

Súmula 122 do STJ
Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, "a", do Código de Processo Penal.

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Ementa

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIOS QUALIFICADO CONSUMADO E TENTADO. CONTRABANDO. CONEXÃO INSTRUMENTAL INCONTROVERSA. DELITOS DOLOSOS CONTRA A VIDA PRATICADOS PARA ASSEGURAR A IMPUNIDADE DO CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO. INTERESSE FEDERAL ESPECÍFICO EVIDENCIADO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI FEDERAL. OVERRULING DA ORIENTAÇÃO ANTERIORMENTE FIRMADA NO CC N. 153.306/RS. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO SUSCITADO.
1. Na situação que deu origem ao presente Conflito, segundo a narrativa contida na denúncia, os homicídios qualificados, consumado e tentado, foram cometidos não apenas para assegurar a vantagem do contrabando, mas também a sua impunidade. Pela tese defendida pelo Juízo Suscitado, somente seriam os homicídios julgados pela Justiça Federal, se houvesse interesse federal específico quanto a eles, o qual entendeu inexistir no caso concreto, não sendo suficiente a sua conexão com o delito de contrabando. Para o Juízo Suscitante, a conexão com o crime federal (contrabando), seria suficiente para fixar a competência da Justiça Federal e, por consequência, do Tribunal do Júri Federal.
2. É incontroverso haver conexão instrumental entre os crimes de contrabando e os de homicídio qualificado consumado e tentado que foram imputados na denúncia, tendo sido os crimes dolosos contra a vida praticados no mesmo contexto fático, para assegurar a vantagem ou a impunidade do crime contra a Administração. A conexão foi expressamente reconhecida pelos Juízos Suscitante e Suscitado, e também pelo Tribunal Regional da 3.ª Região, nos julgamentos por ele proferidos no caso concreto .
3. Se um dos escopos da prática dos crimes dolosos contra a vida, no caso concreto, conforme narrou a denúncia, era o de impedir o exercício do jus puniendi em relação ao crime de contrabando, visaram eles embaraçar a persecutio in criminis que seria realizada na Justiça Federal. Nesse contexto, é evidente o interesse federal na persecução, também, dos crimes dolosos contra a vida, pois cometidos para obstar ou dificultar o exercício de atribuições conferidas a órgãos federais.
4. A simples conexão ou continência com crime federal atrai a competência da Justiça Federal para o julgamento de todos os delitos, nos termos da Súmula n. 122 desta Corte Superior, a qual não faz nenhuma exceção quando se trata de delito doloso contra a vida.
5. O raciocínio que faz prevalecer a competência do Júri Estadual sobre a competência da Justiça Federal parte da premissa equivocada de que a previsão constitucional de competência do Tribunal do Júri diz respeito tão-somente ao Júri estadual e que, por essa razão, se sobreporia à competência da Justiça Federal. No entanto, o art. 5.º, inciso XXXVIII, alínea d, da Constituição da República, assegura a competência do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, não fazendo nenhuma distinção entre o Tribunal do Júri Estadual e o Tribunal do Júri Federal, sendo este último previsto expressamente no art. 4.º do Decreto-Lei n. 253/1967, recepcionado pela atual Carta de 1988.
6. Não é possível se determinar o julgamento do contrabando, crime federal, pelo Tribunal do Júri Estadual. A competência da Justiça Federal é absoluta e tem previsão constitucional, assim como a competência do Tribunal do Júri para os crimes dolosos contra a vida. Ainda que se entendesse que deveria o Tribunal do Júri Estadual julgar os homicídios, deveria haver o desmembramento os autos, permanecendo, na Justiça Federal, o delito de contrabando, mas não se admite a remessa deste último para ser julgado pela Justiça Estadual, ainda que pelo Tribunal do Júri nela instalado.
7. Não se pode atribuir à Justiça Estadual o julgamento de delito federal, pois "[a] competência constitucional atribuída à Justiça Federal não pode ser prorrogada à Justiça Estadual, ante a sua natureza absoluta." (AgRg no AgRg no AREsp n. 1.289.926/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, julgado em 9/4/2019, DJe de 22/4/2019).
8. A observância das competências constitucionalmente previstas para a Justiça Federal e para o Tribunal do Júri, determina que, no caso concreto, o julgamento dos delitos imputados na denúncia cabe ao Tribunal do Júri Federal, seja porque há demonstração do interesse federal específico em relação aos crimes dolosos contra a vida, seja porque está presente a conexão destes com crime federal (contrabando).
9. Overruling da orientação firmada no CC n. 153.306/RS.
10. Conflito conhecido para declarar competente o JUÍZO FEDERAL DA 1.ª VARA DE MARÍLIA - SJ/SP, o Suscitado.
(CC n. 194.981/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 24/5/2023, DJe de 30/5/2023)

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