Entendimento
A realização de busca e apreensão de bens em domicílio caracteriza desvio de finalidade quando a medida autorizada pelo Poder Judiciário se limita à efetivação da prisão preventiva, hipótese em que não resta caracterizado o encontro fortuito de provas.
Hipótese fática
O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o habeas corpus impetrado por André Oliveira Macedo, que apontava uma coação ilegal pelo fato de a polícia, quando do cumprimento de um mandado de prisão preventiva, ter avançado para a realização da busca e apreensão de bens localizados na residência em que se e encontrava.
Daí se seguiu a interposição de um recurso em habeas corpus para o Superior Tribunal de Justiça, com o pedido de decretação da nulidade dessa busca e apreensão e da investigação que com base nela foi aberta.
Fundamentos
A discussão realizada pelo STJ dizia respeito aos limites entre o encontro fortuito de provas, prática admitida pela jurisprudência da Corte, e o desvio de finalidade probatório, algo que se revela ilegal.
O STJ, então, lembrou as hipóteses em que se dá o chamado encontro fortuito de provas, com a citação do caso clássico relativo à interceptação telefônica.
A medida de interceptação telefônica é autorizada pelo Poder Judiciário tendo em vista a existência de indícios do cometimento de um dado delito específico. Mas é possível que, no curso dos diálogos acessados, apareça alguma prova relativa a outro crime. Esse encontro fortuito de provas é admitido tanto pela jurisprudência do STJ como pelos julgados do STF. Cuida-se, a rigor, de um acaso que não pode ser tratado como ilegal – e que justifica, por isso mesmo, a abertura de uma investigação relacionada a esse mesmo crime.
O STJ considerou, entretanto, que o caso julgado nesse RHC 153.988 não revelava um encontro fortuito de provas, mas um verdadeiro desvio de finalidade.
A rigor, o Judiciário havia expedido um mandado de prisão preventiva contra o investigado. E a polícia, recebendo informações a respeito do local em que o recorrente se encontrava, ingressa no domicílio e efetiva a prisão. Se não bastasse, a polícia avança e promove a busca e apreensão de bens (jet ski, lancha, carros, computadores e celulares).
O STJ entendeu que a polícia deveria ter se limitado a realizar a prisão e a promover a busca de bens que estivessem na posse direta do recorrente, mas não efetivar a busca e apreensão de uma série de bens que se encontravam na residência.
A Corte afirmou que é preciso distinguir a autorização para ingressar em domicílio a fim de efetuar uma prisão da autorização para realizar busca domiciliar à procura de drogas, de armas ou de outros objetos supostamente relacionados à prática de crimes.
De acordo com o STJ:
“Ora, se mesmo de posse de um mandado de busca e apreensão expedido pelo Poder Judiciário, o executor da ordem deve se ater aos limites do escopo – vinculado à justa causa – para o qual se admitiu a excepcional restrição do direito fundamental à intimidade, com muito mais razão isso deve ser respeitado quando o ingresso em domicílio ocorrer sem prévio respaldo da autoridade judicial competente (terceiro imparcial e desinteressado), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade.”
A entrada na residência, especificamente autorizada para se efetuar uma prisão, não produz a concessão de um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado, em um procedimento que caracterizaria a chamada pescaria probatória (fishing expedition).
A rigor, o STJ considerou que a medida realizada “não decorreu de mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo recorrente, mas sim de verdadeira pescaria probatória dentro da residência, totalmente desvinculada da finalidade de apenas capturá-lo para fins de cumprimento do mandado de prisão.”
Ao fim, reconhecida a ilegalidade da medida de busca e apreensão, o STJ anulou a investigação aberta com base nesses elementos.
Dispositivos
Código de Processo Penal
Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.
§ 1º Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:
a) prender criminosos;
b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;
c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos;
d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;
e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;
f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;
g) apreender pessoas vítimas de crimes;
h) colher qualquer elemento de convicção.
Art. 248. Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência.
Ementa
RECURSO EM HABEAS CORPUS. CUMPRIMENTO DE MANDADO DE PRISÃO PREVENTIVA. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIA DE BUSCA E APREENSÃO. AUSÊNCIA DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. DESVIO DE FINALIDADE E FISHING EXPEDITION. ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO.
1. De acordo com o disposto no art. 293 do CPP, para ingressar em domicílio a fim de dar cumprimento a mandado de prisão, o executor primeiro deve intimar o morador a entregar o foragido e, depois, em caso de desobediência, se durante o dia, a autoridade - com duas testemunhas - poderá adentrar o imóvel.
2. No caso dos autos, além de não haver sido observado o procedimento legal previsto no referido dispositivo, nem sequer se sabia, com segurança, se o réu estava ou não dentro da casa, haja vista que o mandado de prisão foi cumprido a partir de informações anônimas de que o investigado estava em determinada residência. Não havia fundadas razões de que o alvo estaria, de fato, no interior daquela casa.
3. Ainda que seguido o procedimento legal descrito no art. 293 do CPP e ainda que admitida a possibilidade de ingresso no domicílio para a captura do recorrente a fim de dar cumprimento ao mandado de prisão, isso não bastaria para validar a apreensão de diversos bens - aparelhos celulares, computadores etc. - dentro do referido local.
Quando o cumprimento do mandado de prisão ocorrer no domicílio do investigado, é permitido apenas o seu recolhimento e o dos bens que estejam na sua posse direta, como resultado de uma busca pessoal (art. 240 do CPP), mas não de todos os objetos guarnecidos no imóvel que possam, aparentemente, ter ligação com alguma prática criminosa.
4. A obtenção de elementos de convicção ou de possíveis instrumentos utilizados na prática de crime - ainda que seja ao tempo do cumprimento da ordem de prisão no domicílio do réu - exige autorização judicial prévia, mediante a expedição do respectivo mandado de busca e apreensão (art. 241 do CPP), no qual devem ser especificados, dentre outros, o endereço a ser diligenciado, o motivo e os fins da diligência (art. 243 do CPP), o que, no entanto, não ocorreu. É de se destacar, também, que muitos dos bens apreendidos se encontravam em outras residências do condomínio e que o local onde o recorrente foi detido nem sequer era sua residência.
5. Por se tratar de medida invasiva e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para cumprir a finalidade da diligência. É o que se extrai da exegese do art. 248 do CPP, segundo o qual, "Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência".
6. É ilícita a prova colhida em caso de desvio de finalidade após o ingresso em domicílio, seja no cumprimento de mandado de prisão ou de busca e apreensão expedido pelo Poder Judiciário, seja na hipótese de ingresso sem prévia autorização judicial, como ocorre em situação de flagrante delito. O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites do escopo - vinculado à justa causa - para o qual excepcionalmente se restringiu o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas.
7. Na hipótese, a apreensão de diversos objetos supostamente relacionados à prática de crimes, tais como lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e associação para o narcotráfico, não decorreu de mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo recorrente, mas sim de verdadeira pescaria probatória dentro da residência, totalmente desvinculada da finalidade de apenas capturá-lo para fins de cumprimento do mandado de prisão. Ademais, conforme descrito no boletim de ocorrência, nenhum dos bens apreendidos se encontrava na posse do ora recorrente. A ordem judicial era, tão somente, de prisão. De igual modo, é de se ressaltar que o caso não revela qualquer possibilidade de fonte independente, porquanto não há nenhum elemento concreto capaz de indicar que os agentes estatais pudessem vir a localizar e apreender os referidos bens, se não houvesse o cumprimento do mandado de prisão no interior da residência.
8. Uma vez que não houve prévia autorização judicial para a realização de busca e apreensão na residência do recorrente, deve ser reconhecida a ilicitude das provas por tal meio obtidas e, por conseguinte, de todos os atos delas decorrentes (art. 157 do CPP).
9. Porque reconhecida a ilicitude das provas obtidas em desfavor do recorrente por meio da medida de busca e apreensão - da qual resultou, entre outros, a apreensão de celulares -, bem como de todas as provas das que delas decorreram, fica prejudicada a análise da alegação de que a decisão de quebra do sigilo eletrônico/telemático dos celulares apreendidos não teria sido concreta e suficientemente fundamentada.
10. Recurso em habeas corpus provido, a fim de reconhecer a nulidade da busca e apreensão de todos os bens efetuada em setembro de 2019 durante o cumprimento de mandado de prisão expedido em desfavor do ora recorrente e, por conseguinte, declarar a ilegalidade da apreensão e revogar a constrição desses bens. Consequentemente, fica determinado o trancamento do IP n. 2270947-60.2019.200602, judicializado na forma do Processo n. 1528907-91.2019.8.26.0050 em São Paulo - SP.
(RHC n. 153.988/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 11/4/2023, DJe de 19/4/2023.)