Entendimento
A contratação de "trabalho espiritual" visando eliminar pessoas não caracteriza o crime de ameaça (art. 147 do CP), figura típica que pressupõe que o mal prometido seja sério e verossímil, analisado sob a perspectiva da ciência e do homem médio.
Hipótese fática
Uma acusada de ter cometido o crime de ameaça ingressou com habeas corpus no STJ, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Goiás, que denegou o pedido de trancamento da ação penal a que ela respondia.
A impetrante argumentou que não havia como abrir investigação nem processo pelo simples fato de ter contratado um trabalho espiritual (uma macumbeira), acontecimento que não caracteriza o crime de ameaça.
Fundamentos
O habeas corpus jugado pela Sexta Turma do STJ trouxe um tema relativamente exótico.
A acusada respondia a um processo penal (depois de investigada em inquérito policial) porque contratou os serviços de uma macumbeira, para “eliminar” algumas pessoas (um Vereador, o Promoter de Justiça da cidade, o Delegado de Polícia e um repórter). A ré também adquiriu objetos – cabeças de cera, pequenos caixões e bonecos vodu –, o que, de acordo com a acusação, era suficiente para caracterizar o desejo de causar um mal injusto e grave nas vítimas.
O STJ, porém, concedeu a ordem de habeas corpus e determinou o trancamento da ação penal, ao argumento de que a conduta narrada era atípica.
De fato, o crime de ameaça pressupõe que o mal prometido seja injusto e grave.
As palavras, os escritos os gestos ou o meio simbólico utilizados devem ser sérios e verossímeis; se não o forem, o crime de ameaça fica descaracterizado.
A rigor, o delito de ameaça pressupõe que o meio utilizado tenha potencialidade de concretização sob a perspectiva da ciência e do homem médio, algo que a contratação de uma “macumba” não atinge.
Na verdade, a impetrante havia contratado os “serviços espirituais” pretendendo que o procedimento ficasse reservado – que ele nem chegasse ao conhecimento das vítimas. O fato, entretanto, vazou. Mesmo assim, o STJ entendeu que a conduta descrita não possuía relevância penal, porque não ficou demonstrada essa potencialidade concreta, analisada de acordo com a ciência e a postura do homem médio, de causar um mal injusto e grave.
Dispositivos
Código Penal
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.
Ementa
HABEAS CORPUS. PENAL. PLEITO DE TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL E NULIDADE DAS MEDIDAS CAUTELARES. POSTERIOR OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA QUE INICIOU A INVESTIGAÇÃO. CONSEQUENTE NULIDADE DA BUSCA E APREENSÃO E ACESSO AOS DADOS, BEM COMO DA SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA. ACOHIMENTO DO PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA.
1. Espécie em que a Autoridade Policial - após boletim de ocorrência formalizado por suposto destinatário de trabalho espiritual visando à morte de várias autoridades atuantes no Município de São Simão/GO (fl. 61) - representou "pela busca e apreensão e quebra de sigilo telefônico/telemático por extração de dados em dispositivos móveis" (fl. 47), antevendo a possível prática do delito previsto no art. 147 do Código Penal. Com manifestação favorável do Ministério Público estadual, o Juízo de Direito da Comarca de São Simão/GO deferiu a medida de busca e apreensão, autorizando "o acesso aos dados constantes no(s) aparelho(s) celular(es) eventualmente apreendido(s) na posse da Investigada" (fl. 93). Efetivada a busca e apreensão dos dispositivos móveis, e analisados os dados neles constantes, "foram encontradas, além de fotos das vítimas das ameaças narradas anteriormente, fotografias pornográficas envolvendo M.O.N.".
2. O trancamento do inquérito policial ou da ação penal pela via do habeas corpus é medida de exceção, que só é admissível quando emerge dos autos, de forma inequívoca, a ausência de autoria e materialidade, a atipicidade da conduta ou a incidência de causa extintiva da punibilidade. No caso, a controvérsia posta neste writ prescinde de profunda incursão probatória, demandando, tão somente, a apreciação da representação da autoridade policial e da denúncia que se seguiu.
3. O delito de ameaça somente pode ser cometido dolosamente, ou seja, deve estar configurada a intenção do agente de provocar medo na vítima. Na hipótese dos autos, a representação policial e a peça acusatória deixaram de apontar conduta da Paciente direcionada a causar temor nas vítimas, uma vez que não há no caderno processual nenhum indício de que a profissional contratada para realizar o trabalho espiritual procurou um dos ofendidos, a mando da Paciente, com o propósito de atemorizá-los. Não houve nenhuma menção a respeito da intenção da Ré em infundir temor, mas tão somente foi narrada a contratação de trabalho espiritual visando a "eliminar diversas pessoas".
4. De toda forma, o tipo penal, ao definir o delito de ameaça, descreve que o mal prometido deve ser injusto e grave, ou seja, deve ser sério e verossímil. A ameaça, portanto, deve ter potencialidade de concretização, sob a perspectiva da ciência e do homem médio, situação também não demonstrada no caso.
5. Diante das circunstâncias dos autos, a instauração do inquérito policial, e as medidas cautelares determinadas, bem como a ação penal, porquanto baseadas em fato atípico (ameaça), são nulas, e consequentemente a imputação pela prática do crime previsto no art. 241-B, c.c. o art. 241-E, ambos da Lei n. 8.069/1990.
6. Ordem de habeas corpus concedida para, acolhido o parecer do Ministério Público Federal, trancar a ação penal ajuizada em desfavor da Paciente, com anulação do inquérito policial e das medidas de busca e apreensão, quebra do sigilo telefônico e suspensão do exercício das funções públicas.
(HC n. 697.581/GO, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 15/3/2023.)