Crime de ameaça. Contratação de macumbeira para fazer um “trabalho”. Atipicidade. Trancamento da ação penal. STJ, Sexta Turma, HC 697.581.
Por Flávio Borges
30 de março de 2023
Penal
Parte Especial do CP

Entendimento

A contratação de "trabalho espiritual" visando eliminar pessoas não caracteriza o crime de ameaça (art. 147 do CP), figura típica que pressupõe que o mal prometido seja sério e verossímil, analisado sob a perspectiva da ciência e do homem médio. 

Hipótese fática

Uma acusada de ter cometido o crime de ameaça ingressou com habeas corpus no STJ, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Goiás, que denegou o pedido de trancamento da ação penal a que ela respondia.

A impetrante argumentou que não havia como abrir investigação nem processo pelo simples fato de ter contratado um trabalho espiritual (uma macumbeira), acontecimento que não caracteriza o crime de ameaça.

Fundamentos

O habeas corpus jugado pela Sexta Turma do STJ trouxe um tema relativamente exótico.

A acusada respondia a um processo penal (depois de investigada em inquérito policial) porque contratou os serviços de uma macumbeira, para “eliminar” algumas pessoas (um Vereador, o Promoter de Justiça da cidade, o Delegado de Polícia e um repórter). A ré também adquiriu objetos – cabeças de cera, pequenos caixões e bonecos vodu –, o que, de acordo com a acusação, era suficiente para caracterizar o desejo de causar um mal injusto e grave nas vítimas.

O STJ, porém, concedeu a ordem de habeas corpus e determinou o trancamento da ação penal, ao argumento de que a conduta narrada era atípica.

De fato, o crime de ameaça pressupõe que o mal prometido seja injusto e grave.

As palavras, os escritos os gestos ou o meio simbólico utilizados devem ser sérios e verossímeis; se não o forem, o crime de ameaça fica descaracterizado.  

A rigor, o delito de ameaça pressupõe que o meio utilizado tenha potencialidade de concretização sob a perspectiva da ciência e do homem médio, algo que a contratação de uma “macumba” não atinge.   

Na verdade, a impetrante havia contratado os “serviços espirituais” pretendendo que o procedimento ficasse reservado – que ele nem chegasse ao conhecimento das vítimas. O fato, entretanto, vazou. Mesmo assim, o STJ entendeu que a conduta descrita não possuía relevância penal, porque não ficou demonstrada essa potencialidade concreta, analisada de acordo com a ciência e a postura do homem médio, de causar um mal injusto e grave.    

Dispositivos

Código Penal
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.

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Ementa

HABEAS CORPUS. PENAL. PLEITO DE TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL E NULIDADE DAS MEDIDAS CAUTELARES. POSTERIOR OFERECIMENTO DA DENÚNCIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA QUE INICIOU A INVESTIGAÇÃO. CONSEQUENTE NULIDADE DA BUSCA E APREENSÃO E ACESSO AOS DADOS, BEM COMO DA SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PÚBLICA. ACOHIMENTO DO PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA.
1. Espécie em que a Autoridade Policial - após boletim de ocorrência formalizado por suposto destinatário de trabalho espiritual visando à morte de várias autoridades atuantes no Município de São Simão/GO (fl. 61) - representou "pela busca e apreensão e quebra de sigilo telefônico/telemático por extração de dados em dispositivos móveis" (fl. 47), antevendo a possível prática do delito previsto no art. 147 do Código Penal. Com manifestação favorável do Ministério Público estadual, o Juízo de Direito da Comarca de São Simão/GO deferiu a medida de busca e apreensão, autorizando "o acesso aos dados constantes no(s) aparelho(s) celular(es) eventualmente apreendido(s) na posse da Investigada" (fl. 93). Efetivada a busca e apreensão dos dispositivos móveis, e analisados os dados neles constantes, "foram encontradas, além de fotos das vítimas das ameaças narradas anteriormente, fotografias pornográficas envolvendo M.O.N.".
2. O trancamento do inquérito policial ou da ação penal pela via do habeas corpus é medida de exceção, que só é admissível quando emerge dos autos, de forma inequívoca, a ausência de autoria e materialidade, a atipicidade da conduta ou a incidência de causa extintiva da punibilidade. No caso, a controvérsia posta neste writ prescinde de profunda incursão probatória, demandando, tão somente, a apreciação da representação da autoridade policial e da denúncia que se seguiu.
3. O delito de ameaça somente pode ser cometido dolosamente, ou seja, deve estar configurada a intenção do agente de provocar medo na vítima. Na hipótese dos autos, a representação policial e a peça acusatória deixaram de apontar conduta da Paciente direcionada a causar temor nas vítimas, uma vez que não há no caderno processual nenhum indício de que a profissional contratada para realizar o trabalho espiritual procurou um dos ofendidos, a mando da Paciente, com o propósito de atemorizá-los. Não houve nenhuma menção a respeito da intenção da Ré em infundir temor, mas tão somente foi narrada a contratação de trabalho espiritual visando a "eliminar diversas pessoas".
4. De toda forma, o tipo penal, ao definir o delito de ameaça, descreve que o mal prometido deve ser injusto e grave, ou seja, deve ser sério e verossímil. A ameaça, portanto, deve ter potencialidade de concretização, sob a perspectiva da ciência e do homem médio, situação também não demonstrada no caso.
5. Diante das circunstâncias dos autos, a instauração do inquérito policial, e as medidas cautelares determinadas, bem como a ação penal, porquanto baseadas em fato atípico (ameaça), são nulas, e consequentemente a imputação pela prática do crime previsto no art. 241-B, c.c. o art. 241-E, ambos da Lei n. 8.069/1990.
6. Ordem de habeas corpus concedida para, acolhido o parecer do Ministério Público Federal, trancar a ação penal ajuizada em desfavor da Paciente, com anulação do inquérito policial e das medidas de busca e apreensão, quebra do sigilo telefônico e suspensão do exercício das funções públicas.
(HC n. 697.581/GO, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 15/3/2023.)

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Crime de ameaça. Contratação de macumbeira para fazer um “trabalho”. Atipicidade. Trancamento da ação penal. STJ, Sexta Turma, HC 697.581.